A Literatura no Exílio
A Editora 00h.00.com, a Associação Saci Pererê e a Embaixada do Brasil organizaram a mesa-redonda Literatura no Exílio. Fui chamado para dar um depoimento. Tinha tanto exemplo em minha pele de leitor. O que senti de mais pungente na poesia de Garcia Lorca foi escrito em Nova Iorque. O que mais me comoveu de Hemingway foi escrito em Paris, mas dizendo soava falso e os exemplos mais vivos - coisas de exílio? - vieram de Porto Alegre.
Um dia, o Amilcar Bettega me disse que escrevia, porque algo o fincava como um alfinete de que precisava se livrar. Moacyr Scliar escreveu que o local mais apropriado para escrever é o aeroporto e o João Gilberto Noll, dos contos de O Cego e a Dançarina, contou-me que esboçou a obra numa boate do Rio do Janeiro.
Estávamos em Porto Alegre, e aquilo me comoveu. Tentei fazer igual na discoteca barulhenta da Plínio Brasil Milano. Não deu certo. Lembrando-me disso, volta o aeroporto do Scliar, porque, na minha imitação barata do Noll, na discoteca da Plínio, um que outro verso depois aproveitável foi escrito na hora de chegar ou de partir, nunca durante a boate. Era entrar nela que um ritmozinho se insinuava. O mal traçado tentava seguir a breguice do pisca-pisca das luzes negras ou o desespero dos pegadores, tentando habituar-se. Impregnado talvez da esperança de quem ali chegaria como quem não quer nada, trazendo a chance de tudo acontecer. Nos anos Oitenta, mesmo no inverno, as gurias começaram a dançar de bustiê, hoje cropped. Fazia-se poema, mas se queria a ação como em todas as épocas. Era sair da boate que outro ritmo voltava com a mínima alegria do que conseguiu dançar e, sobretudo, a desesperança de todos os bustiês imóveis: versos carregados do não acontecido.
Depois, em meu depoimento na Embaixada, lembrei-me de Ali Mohai, poeta curdo que conheci, não no escuro da boate na Plínio, mas nos porões da Livraria L´Harmattan na Rue des Écoles. Fomos apresentados por Chem Wata, poeta de Djibuti a quem encontrei no Curso de Psicopatologia do Bebê em Bobigny, intrincados caminhos do exílio.
Toda sexta-feira, a L'Harmattan organizava em seus porões um recital dos mais malucos com direito a debates infindáveis, cheios de perguntas meio bêbadas, respostas meio tortas e muito vinho para mais perguntas.
Ali Mohai contou-nos que a poesia curda jamais foi erudita e sempre foi feita com as palavras do dia-a-dia. Não teve parnasianismo no Curdistão nem arte pela arte, toda arte confundida com a vida. A poesia curda nunca foi livresca, e Ali achava que isso tinha a ver com a falta de pátria, de biblioteca, de instituição. Um vinho depois, declamou em francês um poema ritmando de forma inédita a famigerada ideia de que o exílio era a sua pátria.
Em tempos de valorização de jogos literários, pode não soar bem falar da vida. Em outro encontro literário, um crítico jurou, diante de uma plateia de origem portuguesa, que a boa poesia não vinha da vivência. Não se trata de negar que poesia é arte, arte é forma, e a forma depende do jeito com que se ajeita a linguagem, mas jurei aos portugueses que a poesia vinha da vida. Não necessariamente do acontecimento como bem lembrou Drummond, mas a partir de encontro e desencontro entre quem está vivo. Depois é que ia dar em duas palavras justapostas pela primeira vez com a coragem de finalmente se encontrarem como é de ser na poesia, segundo a análise em carne viva de Maiakovski.
Mas eu é que não fujo da raia nem me agarro no frio da forma quando o tema é o exílio e a dor. Sim, exílio, mas qual e onde? Menos na Nova Iorque do Lorca ou na Paris do Hemingway do que no aeroporto do Scliar, na boate do Noll ou no alfinete do Amílcar.
Se o exílio me calhou de ser na França, vamos de Julia Kristeva, não para dizer que ele é tão simples como estar em outro país e sim porque seremos sempre estranhos a nós mesmos (estrangeiros, ela escreveu).
Desde o cruzamento do primeiro pensamento com o primeiro sentimento, nunca mais a gente pôde se reconhecer e me lembro agora de Pascal Quignard, esse músico romancista: "Tout nom manque as chose. Quelque chose manque au langage."
Se todo nome falta à sua coisa e toda coisa falta à linguagem, Pascal só podia ter razão. O nome lembra a falta da coisa e, por isso, falta sempre alguma coisa na vida e na linguagem, por mais que essa tente preencher aquela.
Agora me volta à presença outro poeta, o Quintana, ao dizer que toda palavra escrita parece uma borboleta espetada na página e, por isso, é sempre triste. Ainda brincamos disso na literatura, exílio escancarado em Porto Alegre, Paris ou Calcutá.
Talvez tenha começado ali. Talvez termine na morte. Que importa! Todos os poetas são curdos.
Sobre o autor:
Celso Gutfreind nasceu em Porto Alegre em 1963. É escritor e médico. Como escritor, tem 33 livros publicados entre poemas, contos infanto-juvenis e ensaios sobre humanidades e psicanálise. Participa de diversos projetos de encontros entre escritores e jovens leitores como o Adote um Escritor e Fome de Ler. É colunista da Revista Estilo Zaffari. Participou de diversas antologias no Brasil e no exterior (França, Luxemburgo e Canadá). Tem poemas e artigos traduzidos para o francês, inglês, espanhol e chinês e seu livro Narrar, ser mãe, ser pai & outros ensaios sobre a parentalidade foi editado na França. Finalista em oito ocasiões, Celso recebeu o Prêmio Açorianos em 93. Agraciado cinco vezes com o Livro do Ano da Associação Gaúcha de Escritores. Também foi finalista do Prêmio Jabuti 2011 e escritor convidado do Clube de Escritores Ledig House em Omi (EUA), 1996. Eleito patronável da Feira do Livro de Porto Alegre cinco vezes (2011, 2012, 2013, 2014 e 2017). Como médico tem especialização em psiquiatria, psiquiatria infantil, mestrado e doutorado em Psicologia, realizado na Universidade Paris 13. Realizou pós-doutorado em Psiquiatria da Infância pela Universidade Paris 6. É psicanalista de adultos e crianças pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre. Atualmente, trabalha em consultório e como professor convidado no curso de Psicologia da UFRGS.